Estigma e cosmopolitismo local: considerações sobre uma estética legitimadora do tecnobrega em Belém do Pará

Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. (UFRGS)

Incorpora-se à recente cena musical de Belém do Pará (Brasil/norte) um gênero produzido/tocado/dançado predominantemente em espaços da “periferia” urbana por grupos que compartilham um estilo de vida refletido na maneira de se vestirem, em códigos verbais/corporais, nos gostos musicais e noutras formas de sociabilidades.

Trata-se do tecnobrega, caracterizado por agregar pulso veloz, recursos da technomusic e manipulação de ritmos/timbres utilizando softwares baixados da internet. Consiste, a princípio, na “modernização” do brega-calypso, este por sua vez produzido através de fontes acústicas e eletrônicas, e identificado por “produtores” e “compositores” locais (categorias nativas para identificar diferentes papéis na criação musical) como resultado da mistura entre músicas caribenhas e guitarra elétrica.

O tecnobrega – como o brega, que se estabeleceu na década de 1960 em cidades como Goiânia, Recife e Belém – transparece uma condição de distinção social, em que ser “brega” significa possuir “mau gosto” estético. Em contrapartida, diferentes atores envolvidos no circuito produtivo do tecnobrega preocupam-se em legitimá-lo, diante daqueles que vêem nele “feiúra” e “cafonice”, e também deles próprios, que amargam esta condição.

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Na esfera da produção musical, a noção de “estigma” ganha status de ação de resistência, através de escolhas estéticas que amalgamam numa mesma música sonoridades legitimadas localmente e um espírito cosmopolita favorecedor da abertura de canais para experiências culturais globais. Sob a perspectiva da legitimação e observando a relação cosmopolitismo/regionalismo/estigma, busco compreender a teoria nativa que emoldura as apropriações estilísticas no tecnobrega a partir de parâmetros/recursos musicais como timbres, ritmos, mixagem e sampling.

Palavras-chaves: tecnobrega.música.Belém.estética.estigma

Situado no campo da produção musical contemporânea, este texto aborda mais um caso entre diversas experiências culturais que pronunciam ao mesmo tempo formas globais de difusão tecnológica e individualidades originadas localmente. O diferencial, todavia, diz respeito ao objeto deste estudo pertencer à categoria de música “degradada”, praticamente não contemplada na literatura sobre música brasileira (Araújo, 1999) e também ausente do circuito da produção fonográfica oficial (Vianna, 2003).

O tecnobrega, gênero de música popular que “estourou” em Belém (Capital do Pará, no norte do Brasil) no verão de 2002, [1] constitui um exemplo cabal para reflexões sobre questões efervescentes na Etnomusicologia, como a “pirataria”, a profusão de discursos/juízos de valor sobre música e as “novas relações no criar, executar e escutar” (Lucas, 1994: 17) instauradas em conseqüência da propagação da informação musical via diversificadas mídias e tecnologias. Embora não aprofundadas aqui, estas questões, que constituem temas nevrálgicos na pesquisa que desenvolvo com o tecnobrega, vêm dar suporte ao enfoque deste texto.

Produzido pela manipulação de recursos eletrônicos em estúdios caseiros e também em espaços de sociabilidades denominados “festas de aparelhagem”, o tecnobrega­ caracteriza-se tecnicamente pela bricolagem de melodias e ritmos com percussão eletrônica, lançando mão basicamente de computadores e de softwares “piratas” baixados da internet. [2] No que diz respeito à constituição do gênero em si, esta música decorre da modernização do chamado “brega-calypso”, [3] que por sua vez enraíza-se no estabelecimento do brega [4] em Belém, a partir da década de 1960, e da proximidade desta cidade com músicas do Caribe, dentre as quais a soca e o calypso (Dudley, 1996).

As “festas de aparelhagem” atuam como mídia principal de divulgação de uma música que integra um conjunto de atividades não-oficiais onde coexistem produções em estúdios caseiros, compra/venda de CDs “piratas” e veiculação/consumo musical através de aparelhagens sonoras transportadas por caminhões de um canto a outro da “periferia” de Belém do Pará. Consistem em espécies de boates itinerantes ao ar-livre freqüentadas principalmente por residentes em bairros ditos periféricos. O equipamento, controlado por DJs, é formado por enormes caixas de som, amplificadores, telões, canhões de luzes, computadores, teclados, aparelhos para mixagem, seqüenciação e sampling (Chion, 1997; Contador, 2001: 55-56).

As “metamídias” [5] (Vianna, 2003) surgiram para o tecnobrega como possibilidade alternativa de se fazer circular uma música estigmatizada (Goffman, 1978), por ser “brega”, por representar o “mau gosto” estético das empregadas domésticas – mencionando um exemplo citado por Araújo (1999) –, sob o ponto de vista de um discurso midiático oficial incorporado pela classe média urbana. [6] Ironicamente, no entanto, foi a comercialização do brega que, na década de 1960, alavancou a indústria fonográfica nacional. [7] Imbuído desse discurso midiático, resolvi encontrar as empregadas domésticas – ou qualquer outro grupo representativo do “povo”, em contraposição à “elite” – de Belém, reunidas por ocasião de uma “festa de aparelhagem”. Surpreendi-me… Os patrões também estavam ali, assim como residentes em zonas “nobres” da cidade que se deslocam para a “periferia”, onde as festas de tecnobrega geralmente acontecem.

Concordando com Vianna (2002: 154), mesmo que: “(…) uma enorme e bem policiada distância [continue] separando a elite e as camadas populares, [e que] o repúdio pela cultura popular [continue] dominando o ‘gosto artístico’ de vários grupos da elite, (…) [certos] grupos [de] elite valorizam o popular”.

Segundo Magnani (1978: 12),

(…) A categoria popular é muito pouco precisa em termos sociológicos e pressupõe uma homogeneidade que está longe de ser comprovada nos estudos existentes sobre camponeses, operários, camadas médias baixas ou outros segmentos e setores que pudessem ser incluídos nessa classificação. Da mesma forma, falar em elite pressupõe um monolitismo nas camadas mais altas da sociedade que poderia colocar na mesma categoria grandes proprietários rurais, alta burguesia, oficiais generais, setores da intelligentzia, administradores, etc. (…) A oposição elite X povo em termos de cultura é muito vaga e pouco precisa.

Se, em termos teóricos, o contraste entre “povo” e “elite” pode ser considerado frágil, em termos etnográficos diferentes discursos nativos tratam de reforçá-lo, uns incorporando o estigma de ser “brega” e outros lhes impondo este rótulo. Esta incorporação acontece de duas formas: por um lado, amargando o estigma de ser “brega”, e por outro, revelando o tecnobrega como música de resistência.

Atingidos pelo estigma em maior ou menor grau, produtores, [8] DJs [9] e cantores [10] de tecnobrega protagonizam um movimento de legitimação para esta música a partir de múltiplos discursos que valorizam o brega enquanto principal expressão musical popular regional.

A cena de uma “festa de aparelhagem”, bem mais complexa do que o restrito território de lazer onde se encontrariam as empregadas domésticas de Belém, constitui espaço privilegiado onde se performatiza musicalmente um “estilo de vida” (Herschmann, 2005: 62-65) brega e a partir do qual me embaso para discutir sobre toda uma produção cultural que é feita coletivamente. Para tanto, é fundamental compreender os perfis sociais que povoam a “festa de aparelhagem”, não através de categorias sociológicas enxutas, ou seja, quero me arriscar na difícil tarefa de ir além do discurso – o nativo e o midiático – que diz que o tecnobrega é uma música de “povão”, ou que é uma música que se sustenta sem a interferência de agentes ou instituições oficiais.

Tomando como referência a relação elite versus povo, este trabalho traz algumas considerações preliminares sobre a inclusão do tecnobrega em uma categoria identitária construída sobre símbolos/significações reveladores de uma música que por um lado é estigmatizada, mas que por outro reflete de modo particular padrões legitimados na esfera oficial.

Embora o tecnobrega tenha se firmado no mercado discográfico e de shows pela via da informalidade, bandas, cantores e “aparelhagens” vêm recentemente buscando conquistar outros públicos, mesmo os que tradicionalmente lhes viram as costas. Se as aparelhagens sonoras apresentavam-se unicamente em espaços das ditas periferias de Belém, hoje já tocam em locais mais “bem-freqüentados”. Se o aparelho-celular da “moda” é de um determinado modelo, o freqüentador da “aparelhagem” vai dar um jeito para adquiri-lo, nem que seja um de segunda-mão ou de marca inferior. Se a classe média urbana já freqüenta bailes funk (Herschmann, 2005), não há motivo para que este gênero não seja aproveitado na produção musical do tecnobrega. Se o tecnobrega é “autenticamente” paraense, é também caracterizado pela “não autenticidade”; ou seja, o som, que é “autêntico”, consiste também na recriação (em “versões”, para usar um termo nativo) de músicas que estão na crista da onda no circuito mundial das rádios, da produção discográfica, audiovisual e dos espetáculos.

O fato é que, não apenas por motivos comerciais, a afirmação de uma identidade “brega”, considerada do “povo” e não da “elite”, está ligada à valorização (mesmo que disfarçada em atitudes de desvalorização) de referenciais culturais legitimados nas mídias oficiais, que por sua vez não costumam abrir espaço para músicas de “mau gosto”, a não ser, é claro, que o produto venda bem. Se vender, pouco vai importar se a música é “boa” ou “ruim”. Aliás, neste caso, muito provavelmente o discurso midiático do qual fala Araújo (1999) ganharia novos contornos. Estaria o tecnobrega estreitando relações com os seus “algozes”?

No particular da produção musical, o movimento legitimador do tecnobrega privilegia uma estética amalgamadora de traços globais e locais, a partir das escolhas pelos produtores de elementos sonoros a serem aproveitados no processo de criação. Apesar de ter recém-iniciado a etnografia, algumas observações e narrativas já apontam em direção ao envolvimento simultâneo do tecnobrega com a cultura do outro e com o entrelace de culturas locais diversificadas, seguindo um princípio pós-moderno denominado “cosmopolitismo” (Hannerz, 1999; Turino, 2000: 7-8).

O espírito cosmopolita entranhado em quem produz o tecnobrega materializa-se nas gravações e nas performances ao vivo de formas diversas. O desafio do produtor consiste em ele não apenas criar novos sons a partir da bricolagem de timbres, ritmos e melodias variados, mas também em obter reconhecimento dos colegas produtores e do público por ser capaz de comunicar a música competentemente (Hymes, 2002: 63). Isto sem dúvida se reflete na popularidade de cantores, DJs e produtores de tecnobrega.

Os modelos sonoros do tecnobrega são inúmeros e efêmeros. Num único dia podem ser criadas várias músicas, trocando um ritmo por outro, alterando timbres, substituindo uma matriz sampleada por outra, misturando sons etc. Nos estúdios de gravação, os produtores realizam estas e outras manipulações utilizando softwares como o PCDJ, que se encontra disponível na internet para “pirateamento”. Dependendo do sucesso das músicas nas “festas de aparelhagem”, elas podem permanecer nas hit parades alternativas por mais ou menos tempo. De qualquer modo trata-se de um tempo bastante curto, mais até do que o tempo de constituição de ídolos fugazes em dimensão global (Valente, 2003: 20-21), que se popularizam instantaneamente, enriquecem e em seguida desaparecem para sempre. Tanto o ritmo frenético do trabalho em estúdio quanto a busca de novas fórmulas de sucesso por cantores e conjuntos de tecnobrega traduzem, por um lado, “uma pluralidade de modos diversos de interpretação do mundo” caracterizadora das sociedades complexas (Magnani, 1978: 08), e por outro, a necessidade de serem reconhecidos artisticamente, inclusive fora dos espaços já consagrados por onde esta música circula.

O “novo exotismo” musical paraense gradua as “cores” do brega techno com “batidas” de funk, fragmentos sampleados de trilhas sonoras hollywoodianas, timbres e ostinatos utilizados no carimbó (Amaral, 2003) e em outras músicas locais, entre demais exemplos que esclarecem musicalmente a relação entre a valorização de próprios culturais regionais/nacionais e o universo da produção eletrônica Ocidental (Contador, 2001: 55). Estes entrecruzamentos musicais constituem ainda uma contundente via de acesso à pretendida legitimação do tecnobrega em outros mercados e para outros públicos, especialmente os de “elite”, que hoje apreciam o funk da “periferia”, mas continuam rejeitando os gêneros brega, também da “periferia”.

Diante do exposto, não poderia discordar da pertinente afirmação de Araújo (1999) a respeito do poder do discurso midiático que banalizou o brega nacionalmente como música “grotesca”, um dos motivos pelos quais, a meu ver, o movimento legitimador do tecnobrega vem ressoando fortemente, tanto dentro do universo de domínio desta música quanto para além dos muros construídos – mas que não existem, ao fim e ao cabo – para separar o “povo” da “elite”.

Estaria com os dias contados o circuito alternativo (das “metamídias”) de produção-circulação-recepção que tradicionalmente caracteriza o tecnobrega? [11] Se esta pergunta ainda não pode ser respondida, quero ao menos confirmar que o brega do Pará já vem caindo nas graças da grande mídia, assim como cantores brega por todo o Brasil agora disputam espaços com alguns “incontestáveis” da Música Popular Brasileira. De ambas as partes, esta postura de abertura é importante, na medida em que outras músicas passam a ser conhecidas mais amplamente e também debatidas nas distintas áreas do saber musical.

REFERÊNCIAS

Amaral, Paulo Murilo. O Carimbó de Belém, entre a tradição e a modernidade. 2003. São Paulo. (Dissertação de Mestrado em Música – Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP).

Araújo, Samuel. 1999. “Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma contribuição teórica à Etnomusicologia”. Revista Opus. n 06.

Chion, Michel. 1997. Músicas, media e tecnologias. Lisboa: Instituto Piaget.

Contador, António Concorda. 2001. Cultura juvenil negra em Portugal. Oeiras: Celta.

Dudley, Shannon. 1996. “Judging ‘By the Beat’: Calypso versus Soca”. Ethnomusicology. 40/02: 269-298.

Goffman, Erving. 1978. Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.

Hannerz, Ulf. 1999. “Cosmopolitas e locais na cultura global”. Attílio Brunetta (trad). In: Mike Featherstone (org). Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 251-266.

Hershmann, Micael. 2005. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ.

Hymes, Dell. 2002. “Modelos de la interaccion entre lenguage y vida social”. In: Golluscio, Lucia (org). Etnografia del Habla: textos fundacionales. Buenos Aires: Eudeba.

Lucas, Maria Elizabeth. 1994/1995. “Etnomusicologia e globalização da cultura: notas para uma epistemologia da música no plural”. Em Pauta – Revista do curso de Pós-graduação em Música – Mestrado e Doutorado – UFRGS. 9/10: 16-21.

Magnani, José Guilherme Cantor. 1978. “O conceito de Cultura e o estudo de Sociedades Complexas: uma perspectiva antropológica”. ARTEFATO – Jornal de Cultura. 1/1.

Turino, Thomas. 2000. Nationalists, cosmopolitans, and popular music in Zimbabwe. Chicago end London: University of Chicago Press.

Valente, Heloísa de Araújo Duarte. 2003. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/Fapesp.

Vianna, Hermano. “Diario de viaje”. Revista Número.

[Consulta: 13 de setembro de 2006].

_________. O mistério do samba. 2002. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ.

_________. 12/102003. “Tecnobrega: música paralela”. Folha de São Paulo. Mais!/10-11.

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[1] Acessar: www.revistanumero.com/49/sepa1b.html

[2] As bandas de tecnobrega representam um terceiro modo de produção, misturando música computacional com execução instrumental (teclado, guitarra e baixo elétrico, normalmente) ao vivo.

[3] A constituição do brega-calypso no Pará remonta ao período de popularização do gênero brega no Brasil. Acanhado nas altas rodas, a Jovem Guarda migrou para o interior do Brasil (década de 1960). Nas grandes cidades, por sua vez, “manteve público fiel entre as camadas mais pobres da (…) população, passando a ser chamada pejorativamente de brega” (Vianna, 2003). Em Belém do Pará, semelhante público passou a freqüentar os “bregões”, vocábulo nativo para identificar casas de shows especializadas em tocar música brega para um público “brega”.

[4] Em seu artigo Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma contribuição teórica à Etnomusicologia, Samuel Araújo (1999) discute sobre a banalização nacional do termo brega, a partir da qual qualquer música que sugira conteúdo “grotesco” poderia ser classificada como “brega”.

[5] Mídias alternativas; mídias não-oficiais.

[6] Id; ibid.

[7] Id; ibid.

[8] O trabalho dos produtores (também chamados de DJs) limita-se ao estúdio.

[9] Produzem música nas “festas de aparelhagem”.

[10] Atuam especialmente em bandas de tecnobrega.

[11] Acessar: www.revistanumero.com/49/sepa1b.html