O Carimbó Marapaniense tem servido, nos últimos tempos, como tema para estudos em vários de seus aspectos. O trabalho poético de vários mestres, destacando-se o Duluca e o Lucindo Costa, ambos já falecidos, porém, sem antes deixarem para a posteridade um, legado muito grande de composições, partituras e um trabalho poético abrangente, onde o cotidiano, os costumes, e as tradições, foram exploradas de tal maneira que, em vez de cantores/compositores, podemos entendê-los como historiadores regionalistas.
Uma música composta pelo Lucindo Costa ou simplesmente Mestre Lucindo, tem uma magia tão profunda, tão especial, tão brilhante que podemos classificá-la como antológica, entre tantas que o velho Mestre deixou:
"Se eu soubesse que tu vinhas,
Eu fazia o dia maior,
dava um nó na fita verde,
Prá prender o raio do Sol". 
 
O Lucindo, no seu pensamento bem caboclo, porém, de elevado sentimento romântico do homem nascido à beira-mar, onde as ondas e a brisa macia, alisam a pele e embalam os cabelos, soube colocar a criatividade cósmica de poeta nato.

Se eu soubesse que tu vinhas, Eu fazia o dia maior"
Foi a explosão de alegria, de contentamento, de prazer, ao ver a pessoa amada e querer que o dia de vinte e quatro horas, fosse infinito, talvez com 48, 72 ou 96 horas, para que aquele momento fosse eterno, sem qualquer interrupção, que pudesse atrapalhar aquela visão divinal para o velho poeta "Dava um nó na fita verde, Prá prender o raio do sol", ele bem que poderia dizer que dava um nó na fita branca, azul, vermelha ou lilás, porém, com rara felicidade, com raro talento, com raro esplendor, escolheu o verde, como querendo simbolizar a esperança que lhe invadia a alma, até mesmo a esperança de ver a mulher amada voltar um dia a seus braços de eterno amante. Mas, a sua intenção de "Prender o raio do sol" era, sem dúvida, para que aquele momento, fosse iluminado, permanentemente, pela luz natural e não por uma luz que a todo instante pudesse ser apagada, até com um simples toque no interruptor.

Tem uma música que se credita ao velho Lucindo, que encarna bem o regionalismo do salgado, principalmente o seu lado agrícola, e que, infelizmente sua letra original sofreu uma modificação imperdoável, senão vejamos a versão original:

"Dona Maria chegou
chegou de Moro-oca,
para fazer a farinha, farinha de tapioca
É prá rebolir, é prá rebolir,
É prá rebolir, bolir, bolir, bolir, bolir".

Na versão que os conjuntos e grupos andam cantando e gravando, substituíram o rebolir por remexer. Na letra original a Moro-oca, é uma localidade fictícia ou um tipo de cabana indígena, não se sabe o certo, porém, o rebolir na letra significa arredondar o amido da mandioca para produzir o caroço ideal da farinha de tapioca e não rebolir, no sentido de se remexer ou requebrar.

Lucindo Costa, na verdade, cantou a mulher, em todas as formas ou na forma que o momento se apresentou para o poeta, ofereceu fórmulas para que o amor pudesse ganhar contornos bem diferentes, evidenciando, o romantismo, sempre num linguajar bem regionalista, onde até mesmo a famosa arquitetura cabocla não foi esquecida:

"Não te encosta na parede,
Que a parede tem cipó.
Te encosta no meu peito,
Que esta noite eu durmo só".

Seus momentos de grande amor pela mulher amada foram tantos, e foram retratados nas suas músicas com muita precisão e mostram, inconfundivelmente, os seus anseios e delírios, quem sabe, ao longo das pescarias, entre uma e outra remada ou tecendo as tarrafas no seu tapirí. Claro que o Lucindo apanhava no cotidiano, a visão do seu universo, os costumes e os fatos corriqueiros do dia-a-dia para vasculhar sua mente privilegiada e colocar música na letra que bolava sem escrever, cuja pauta maior era a viola ou o banjo rústico que saia das sapupemas do varzeado marapaniense:

"Bateu vento na roseira,
Me mudei pro Marizá,
Cajueiro pequenino
Carregadinho de flor,
Eu também sou pequenino
Carregado de amor".

As figuras de imagem, as transfigurações, as vibrações do coração são bem evidentes nesse poeta, porque nem sempre tinha uma palavra de amor, de dedicação, visto que momentos de depressão, de desilusão e de incompreensão, também, foram vistos em seu trabalho:

"Se esta mulher fosse minha,
Eu ensinava a viver.
Dava limão com farinha,
A semana inteirinha,
Prá ela comer".

A experiència de 80 anos vivido por Lucindo, foram importantes e muitas vezes seus conselhos vinham na forma de música, da maneira como achava melhor, pois não saia de um lado para o outro, dizendo isto ou aquilo para os mais jovens, mas teve tempo de aconselhar com seriedade:

"A folha da bananeira
de verde ficou madura
quem gosta de mulher dos outros
não tem a vida segura".

No final, cansado da vida, com fama, com tudo, até mesmo de bem com o amor, tenha retratado a canção de despedida como forma de perpetuar a sua morte:

"Adeus morena. 
Meu amor, vou te deixar. 
Eu vou embora,
vou cantar noutro lugar".

Na verdade o Canto do Mestre Lucindo é um canto ecológico, onde a natureza, o homem, o cotidiano, são componentes para o seu trabalho poético tão abrangente, tão audaz e tão incisivo, que dar a entender o seu recado como tomada de posição:

"Minha rolinha que marisca pelo chão,
Não mate minha rolinha, que marisca pelo ar,
Não mate a rolinha ela não sabe avuar".

Houve de fato uma preocupação marcante na poética do Mestre Lucindo, onde sempre quis (quando não falava do amor) enaltecer a beleza da natureza, as praias onde pescava, por onde andava e por onde fazia suas meditações.

"A praia do Algodoal
É linda e tem riqueza,
No farol do Maiandeua
Onde mora a Princesa"

coro:
Eu já vi a princesa falá,
Eu já vi a princesa cantá
No morro do Maiandeua
Na Praia do Algodoal"

Não só o cantar de Lucindo Costa, mas o cantar dos Mestres Malagueta, Membeca, Duluca e tantos outros, tem como intuição a defesa dos mais fracos, suscitando o espírito da sobrevivência. Para eles o camarão, maçarico, as rolinhas, o sarará, e tantos outros pássaros e moscas precisavam de defesa, precisavam de alguma coisa para alertá-los do perigo não somente de seus próprios parceiros de natureza, como também do homem:

"Olha a cobra passarinho
Xô, xô, olha a cobra passarinho"
Periquitamboia pendurada no caminho,
Prá pegar, pegar, o passarinho.
Olha a cobra passarinho, xô, xô!...."

"Cuidado, sarará, que lá vem maguari, "
"Peixe-piaba, tubarão quer te comer"

Portanto, há um conteúdo maravilhoso nessa relação homem-natureza, nesse diálogo entre o poeta e o seu cotidiano, e se percebe bem, e com muita clareza uma posição pragmática, que mesmo sem um fundamento filosófico, sua percepção é tão profunda que muitas vezes seu pensamento se aglutina nas coisas ou naquilo que é muito natural para o poeta de carimbó. As reflexões, não somente do mestre Lucindo, mas também no trabalho de outros mestres, um universo próprio, distinto e peculiar e geralmente ligado ao seu meio: A mulher, o mar, os elementos da composição do mar (peixes e mariscos), a natureza e a exuberância praianas.

Os cantadores de carimbó de Marapanim tem sua vida ligada invariavelmente a atividade pesqueira, fato que o harmoniosa indelevelmente o poeta, entre a vida e a arte, e nessa perfeita simbiose surgem as belíssimas poesias:

"A onda jogava prá lá,
A onda jogava prá cá
Joguei minha rede no mar
Só pra ver o peixinho pegar"

O que se percebe, nesse contexto é que existe uma quase unanimidade de que o carimbó nasceu do batuque e o sincretismo é tão visível na dança que negros, mestiços e caboclos se irmanaram e a dança deixou foi feita para se alinhar aos costumes folclóricos de aceitação social. Evidentemente que tem-se de afirmar que o carimbó não perdeu a influência indígena, especialmente nos seus elementos construtivos: coreografia, música e versos. O caboclo, por assim dizer, foi decisivo para a aceitação do ritmo a até mesmo de uma certa linha melódica mais cadenciada e sua influência é bastante identificada quando, por exemplo, ensaia o "Carimbó na Roça", onde os dançarinos e dançarinas se vestem a caráter, com roupas de chita ou mescla, cabeça coberta por turbantes ou chapéus, como se fossem para o roçado, levando ao ombro, manivas, tipiti, paneiro, ralo, foice, machado, terçado, cavador, enchada e demais apetrechos para um plantio ou mutirão. Dessa forma a participação do caboclo, do índio, do negro e do mulato convergiram para um só elemento, um só ritmo, uma só toada, os volteios rápidos, os requebros, as mexidas nos quadris e a esperteza nos passos, são próprios do Carimbó.

Em outras épocas a dança do Carimbó, especialmente em Marapanim, era tida como dança de temporada, com data para iniciar e com data para encerrar, pois começava em 25 de dezembro e podia ir até o dia 06 de janeiro, por ocasião da Festa dos Santos Reis, que coincidia com a derrubação do mastro.

O barracão era tão importante para a dança, como era o conjunto, pois o chão era previamente preparado com argamassa de terra batida, misturada a cinza das queimadas para não fazer poeira com facilidade e a iluminação era feita com tochas armadas em pedaços de bambu, que servia de depósito para o azeite extraído do fígado do cação ou do espardate, em cuja extemidade ficava um morrão embebido em óleo que queimava sem parar.

Aliás que o barracão era uma das obrigações do juiz do mastro, que juntamente com a juíza da bandeira se revezavam durante o período das festas em oferecer o melhor para a população.

Na Cidade de Vigia, o Carimbó é conhecido como Zimba e o ato de se dizer "vamos zimbar"quer seja em Vigia, ou em qualquer outra localidade do Salgado, significa convidar o outro para dançar o Carimbó. Portanto, tanto o Zimba, como Carimbó, são danças idênticas, com os mesmo elementos, inclusive na técnica do batimento do tambor, na sua linha melódica e no som agudo.

Um fato que não se pode deixar de registrar era o modelo que quis imprimir, o Mestre Inspetor, caboclo bem desenvolvido, que vivia em Marapanim fazendo de sua canoa grande um comércio de regatão entre Marapamm e Abaetetuba, de onde conduzia cachaça para vender em toda costa. No dia 25 de dezembro, o Mestre Inspetor patrocinava uma grande noitada de Carimbó em sua própria casa, distribuindo cachaça a vontade para que o "elemento esquentasse". No entanto, a diferença entre outras festas, era de que os homens estivessem vestidos de paletó e gravata, indumentária que servia de ingresso para o cavalheiro e ninguém, em hipótese alguma, podia dançar sem a indumentária, se assim o fizesse, estaria fora da festa e não voltava mais para o salão.

Nesse quadro de mostragem do Carimbó, também verifica-se que houve uma constante deturpação de sua origem, pois a mercantilização da música, levou a que gravadoras e artistas, transformassem o Carimbó original em Carimbó de Vanguarda, ou Carimbó Eletrônico, introduzindo instrumentos de sopro, guitarras, baixos, que pouco-a-pouco substituía o pau do Carimbó elemento indispensável para a afirmação do ritmo e com isso colocando uma cultura iniciada no século XVIII e cujo elemento principal era exatamente o pau escavado, com um couro entesado em uma das extremidades, como dispensável, obrigando a reservarem-no nas manifestações folclóricas.

Os elementos que, descaracterizaram o carimbó, por certo, não tem e nunca tiveram um compromisso com a música, com o legado e processaram laboratorialmente uma mudança com objetivos comerciais.

Eles representaram nesse antagonismo o meio mais audaz de mostrar o carimbó, porém nunca mais teremos um carimbó nativo bem caboclo que a todo momento reforça os bons convites:

Os cantores de vanguarda exercem hoje a dominação e se acham no direito de reverter um modelo de mais de 150 anos de história.

Mestre Lucindo
Mestre Lucindo

Joaquim Amóras Castro