Henry Burnett
Jornal O Liberal - Caderno Magazine - 12/março/2006

Acerca da pré-história da modernidade muito ensinaria a análise da mudança de significado sofrida pela palavra sensação (…). Ela se transformou no grande desconhecido e, finalmente, na excitação maciça, na embriaguez destrutiva, no choque como bem de consumo. Ser ainda capaz de perceber alguma coisa, sem se preocupar com a qualidade, substitui a felicidade porque a onipotente quantificação tirou-nos a própria possibilidade de perceber.
T. W. Adorno, “Minima Moralia”.

Finalmente nós paraenses já podemos nos orgulhar de nosso Estado e de nossa gente. Nos últimos meses, diante de milhões de telespectadores, a Banda Calypso freqüenta os programas mais assistidos das maiores emissoras do país. O Anormal do Brega já foi no Jô, o Wanderley Andrade estava em cadeia nacional. De verdade! Não é um projeto social qualquer, não é uma tragédia, não matamos nenhuma missionária americana, não fuzilamos os sem-terra, não batemos um novo recorde por assassinato na luta agrária, de jeito nenhum, somos nós mesmos, inteiros, cantando e rebolando para todo mundo ver quem somos de verdade e como é animada nossa música e nossa cultura.

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Não precisamos mais nos envergonhar de nossa condição de atrasados, índios e preguiçosos, saímos da condição de pobres da periferia do país para o lugar de estrelas. Podemos ser vistos em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, Salvador, de ponta a ponta do Brasil, todos podem ver o que é um paraense, contrariando o que os preconceituosos de São Paulo e do Rio sempre acharam: que éramos parte do atraso do país e que eles - os paulistas - tinham que trabalhar dobrado para que nós pudéssemos dormir depois do almoço. Humilhação nunca mais.

Críticos de música, produtores, antropólogos, todos elogiam o Tecnobrega como um momento maravilhoso da música paraense, junto com o funk carioca, o hip-hop paulista, a tchê music gaúcha, o lambadão mato-grossense, o forró amazonense e toda a música das periferias das grandes cidades. É de verdade, não estamos diante de uma enganação da mídia. Vocês não viram no “Fantástico”?

Nós seremos lembrados como aqueles que conseguiram enganar as grandes gravadoras, vendendo milhões de cópias nas barbas de um empresário fonográfico embasbacado, que não sabia onde ficava Belém no mapa do Brasil. o Brega, quer dizer, o Tecnobrega - afinal já somos modernos - vai invadir tudo. Só se fala nisso. Podem bater no peito e gritar: é Pará isso.

No final da década de 60, o Brasil descobriu um outro momento desse ser amazônico: Paulo André, Rui Barata e Fafá de Belém. Nossa música também circulava livre e nacionalmente. Fafá era uma estrela ascendente enquanto Paulo e Rui jogavam alto no quesito letra e música. Nenhum nome das gerações posteriores chegou tão longe. Eu tinha orgulho de conhecer de perto compositores como Vital Lima, Paulo Uchoa, Edir Gaya, Walter Freitas, Ronaldo Silva, Gilberto Ichihara e tantos outros, tão próximos, tão vivos… hoje entendo um pouco melhor o percurso de nossa mais popular cantora. Entendi que ela trocou a música da Amazônia pela opção da diversidade mercadológica. Décadas depois de um silêncio tumular, a popularidade da dupla Joelma/Chimbinha é incomparável. O Pará é, novamente, foco das atenções.

O grande mérito do Tecnobrega não diz respeito à qualidade da música - quem os celebra não entra nesse mérito -, mas à capacidade de ter nascido avesso às gravadoras (ver texto de Pedro Alexandre Sanches, “A música fora do eixo”, Carta Capital, n° 380). No entanto, ironicamente, por que as emissoras abertas levam a Banda Calypso pra tocar no horário nobre da TV, que todos sabem que trabalha em conluio com as gravadoras? Os mecenas Faustão, Gilberto Barros, Gugu, Luciano Huck descobriram repentinamente como é boa a fusão do Caribe com a Amazônia? Por que Regina Casé ganhou um quadro no superalternativo “Fantástico” pra tentar provar que só os chatos não gostam dessa música que brota livre nas periferias? Resposta: porque se essa música não tivesse passado por um processo de adequação, de pasteurização, de uniformização ela jamais tocaria na TV. Para 90% das grandes corporações de mídia televisiva brasileira, só interessa música ruim, é assim há pelo menos duas décadas.

Quando o Brega começou a tomar conta de Belém e se sobrepor ao Axé, todos os méritos deviam ser dados. Mas louvável era a consciência que os bregueiros pareciam ter da extensão de sua música. O axé-music sempre se levou a sério, com o aval de medalhões da MPB. Os bregueiros não, sempre foram especialistas na auto-ironia, no riso-de-si. A Banda Calypso guarda essa auto-ironia, não é possível que o figurino da Joelma… bem…
eu ouço Brega quando quero lembrar do cheiro do interior, do clima erótico da cidade em que nasci, da graça impagável das letras. Não se trata aqui de uma crítica negativa ao Brega, todos nós cumprimos um papel, o Brega também. Trata-se de uma tensão necessária, para evitar que a gente comece a achar normal a necessidade de torcer e sentir orgulho até da Thaís do “Big Brother” pelo simples fato de que ela é paraense.
Se a música comercial não pode mais ser boa - sim, porque já foi um dia -, então toda essa música se justifica como um grito social. Mas, o deslumbramento de pessoas do meio musical com essa música me causa grande espanto. Confesso não perceber quão grandiosa ela é, moderna e antenada. Devo estar perto demais.

Por fim: já se pode ir a uma bregão de aparelhagem na Assembléia Paraense? Estão esperando o quê?! Precisamos fazer como o funk carioca, que vê a nata da sociedade se acabando na pista, numa quebra das barreiras sociais. Ainda que no fim da festa os bem criados voltem para casa de Mercedes Classe A e durmam em cama branca com ar-condicionado, enquanto a moçada da perifa espera o busão.

Isso não interessa, não é mesmo? Questão menor diante da alegria de ser brasileiro, de ser paraense.